A outorga onerosa do direito de construir é ao mesmo tempo um instrumento de gestão do território e de financiamento da cidade

Este artigo é o segundo da série sobre os instrumentos de política urbana, cujo objetivo é explorar o papel que estes instrumentos ocupam na interface entre o planejamento urbano público e o mercado imobiliário.

O primeiro artigo da série fez uma introdução conceitual e a apresentação resumida dos dez instrumentos detalhados no Estatuto da Cidade. Neste texto vamos tratar de um dos instrumentos mais interessantes, a Outorga Onerosa do Direito de Construir - OODC.

Instrumentos de política urbana: o que é Outorga Onerosa do Direito de Construir?

Sumário do artigo

Introdução

A Outorga Onerosa do Direito de Construir - OODC é um instituto jurídico-político que faz parte do grupo de instrumentos de política urbana que em nosso artigo anterior definimos como “mais sofisticados”, e é detalhada na seção IX do capítulo II do Estatuto da cidade.

Numa análise semântica preliminar temos que a OODC é uma outorga, ou seja, é uma permissão ou uma concessão (emitida pelo poder público), é onerosa, ou seja, é dada mediante pagamento, e refere-se ao poder de exercer o direito de construir além de um determinado limite em determinado terreno urbano.

A OODC é um dispositivo viável através da relativa separação entre o direito de propriedade e o direito de construir trazida a partir do conceito de função social da propriedade instituído pela Constitutição de 1988 e regulamentado para este uso no Estatuto da Cidade (L 10.257/2001), e que atribui ao poder público a propriedade do direito construtivo e o poder de aliená-lo àqueles que desejarem exercê-lo em um imóvel urbano.

Solo Criado

O instrumento da OODC tem origem conceitual em um instituto jurídico denominado Solo Criado, surgido na Europa, na década de 1970, num contexto de acelerada e desordenada ocupação do solo urbano. O pressuposto adotado pelos europeus era o de que o direito de construir deveria pertencer à coletividade, não podendo ser individualizado, senão por meio de ato administrativo de concessão ou autorização pelo poder público, ou seja, uma separação total entre direito de construir e direito de propriedade.

No Brasil, as discussões teóricas e conceituais acerca do assunto foram consolidadas em um documento denominado Carta de Embu, cujo texto foi aprovado no fim de 1976, que marca a definição brasileira do instituto do Solo Criado.

Nas conclusões da Carta de Embu, é possível observar que seus signatários entendiam que o direito de construir estava, sim, inserido no direito de propriedade, como um dos poderes do proprietário do bem imóvel. Todavia, como poder inerente ao direito de propriedade estaria apenas o direito de construir até o limite do Coeficiente Único de Aproveitamento. A partir desse limite, o “solo excedente” deveria ser adquirido do poder público. Seguia uma espécie de vertente intermediária entre a separação total, que era o eixo da discussão européia, e a vertente oposta que defendia que o direito de construção estaria integralmente dentro do direito de propriedade.

Estatuto da cidade

O instituto do Solo Criado conforme descrito na Carta de Embu acabou se mostrando inviável de ser aplicado na época, pelos municípios, por uma questão de inconstitucionalidade, dado que a competência legislativa para imprimir limitações ao direito de propriedade (direito civil) é da União, e à época não havia legislação federal regulamentando o assunto.

Esta questão encerrou-se com a publicação da Lei 10.257 em 2001, o Estatuto da Cidade, e o instituto do Solo Criado passou a existir legalmente, então com o nome de Outorga Onerosa do Direito de Construir.

Um outro questionamento da constitucionalidade do Solo Criado / OODC partia do argumento de que o instituto violaria o direito de propriedade. Todavia a linha adotada pelo Estatuto da Cidade é a mesma da vertente intermediária das conclusões da carta de Embu, com o entendimento de que, embora o direito de propriedade englobe a disposição e a utilização do bem, caberia à legislação estipular os limites da disponibilidade e desse uso, ou seja, estão reconhecidos os direitos inerentes à propriedade, ainda que com o exercício limitado pela legislação ordinária que viria para definir a extensão do seu uso e da sua disposição.

Coeficientes de aproveitamento

Para orientar o uso e a ocupação do solo urbano, o plano diretor utiliza um mecanismo chamado Coeficiente de Aproveitamento - CA, que é a relação entre a área do terreno e a área máxima permitida para edificação neste terreno. Assim, quando esse coeficiente é 1, o dono de um terreno de 1000 m², por exemplo, pode construir até 1000 m² (uma vez a área do terreno). Se o coeficiente for 2, ele pode construir até 2000 m² no mesmo espaço (duas vezes a área do terreno).

figura 1 - Coeficientes de Aproveitamento

Figura 1: O Coeficiente de Aproveitamento - CA é a relação entre a área do terreno e a área edificável máxima.

No contexto da existência da OODC, existem dois tipos de CA: básico e máximo. O CA básico - CAB garante o direito básico de uso da propriedade, enquanto o CA máximo - CAM estabelece um potencial construtivo adicional, adquirível mediante contrapartida financeira.

O CAB, em certo sentido, é o que era chamado de Coeficiente de Aproveitamento Único na Carta de Embu e nas discussões relacionadas ao Solo Criado, enquanto o CAM é um segundo limite prático, é o limite do potencial construtivo, além do qual não se pode construir nem mesmo com pagamento de contrapartida, e geralmente é definido com base na capacidade de carregamento da infraestrutura urbana.

A OODC nada mais é que uma concessão emitida pelo poder público para que o proprietário de um imóvel ou o desenvolvedor imobiliário construa acima do Coeficiente de Aproveitamento Básico estabelecido, mediante o pagamento de uma contrapartida financeira. Ou seja, se um terreno está localizado em uma área de CAB 1 mas que permite um CAM de 3, o proprietário ou desenvolvedor precisa adquirir o direito de construir a mais, se assim desejar, não podendo ultrapassar o CAM estabelecido para aquela região, de modo que a área máxima a ser outorgada equivale à diferença entre o Coeficiente de Aproveitamento Máximo e o Coeficiente de Aproveitamento Básico estipulados para a área.

figura 2 - Coeficientes de Aproveitamento Básico e Máximo

Figura 2: A área edificada além do limite do CAB, até o limite do CAM, é passível de cobrança de contrapartida através do instrumento da Outorga Onerosa do Direito de Construir.

Objetivos da Outorga Onerosa do Direito de Construir

Um dos principais objetivos da OODC é recuperar parte dos investimentos realizados ou a serem realizados pelo poder público no sentido de suprir as demandas geradas por densidades urbanas mais elevadas.

Espera-se que nas áreas com mais infraestrutura o plano diretor determine um CAM mais alto, com o objetivo de promover um uso eficiente da infraestrutura urbana e da cidade, de controlar a densidade populacional e de aproximar moradia e emprego. No entanto, esse potencial construtivo maior - alienável e adquirível via OODC - só é viável porque a região primeiro recebeu investimentos do poder público e da coletividade – consumidores, prestadores de serviços, empresários do comércio local, etc.

Conceitualmente, é por conta desses investimentos que, do potencial construtivo adicional, é passível a exigência de contrapartida por parte do poder público. Através da OODC, por meio da qual “a cidade cobra” pelo uso adicional do solo urbano, e os “recursos são devolvidos” à coletividade para que sejam, em tese, reinvestidos na própria cidade.

Ironicamente, o Estatuto da Cidade não menciona a utilização dos recursos arrecadados com a OODC na implantação de infraestrutura. A lei define, explicitamente, que os recursos podem ser utilizados para:

  1. regularização fundiária;
  2. execução de programas e projetos habitacionais de interesse social;
  3. constituição de reserva fundiária;
  4. ordenamento e direcionamento da expansão urbana;
  5. implantação de equipamentos urbanos e comunitários;
  6. criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes;
  7. criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas de interesse ambiental;
  8. proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico.

Além disso, a OODC originalmente e conceitualmente também tem como objetivo indireto “equalizar” os preços dos terrenos, evitando que os índices urbanísticos causem a supervalorização de algumas áreas - onde for permitido adensar mais - e a desvalorização de outras - onde os limites forem mais baixos.

Por isso é importante que os coeficientes estejam alinhados com os objetivos que o município determinou ou enxergou para cada parte da cidade, ou seja, na maior parte dos casos a OODC deve ser utilizada naquelas áreas onde é possível e desejável adensar mais.

Neste sentido, a OODC também tem o potencial de funcionar como poder de dissuasão por parte do poder público em relação aos proprietários no intuito de desincentivar práticas genericamente definidas como “especulação imobiliária”, de retenção de imóveis urbanos para valorização, dado que, em tese, a utilização generalizada de OODC por parte de um município tende a tornar esta retenção menos vantajosa economicamente.

Na medida em que o município determine coeficientes de aproveitamento diferentes de acordo com as características de cada zona e com os objetivos definidos para elas, o instrumento não é meramente arrecadador e passa a também ter um caráter de mecanismo de indução do desenvolvimento urbano, dificultando ou facilitando o adensamento de áreas de acordo com os objetivos estabelecidos na política urbana. Um meio de se fazer isso é limitar o estoque de potencial construtivo a ser “disponibilizado” para o mercado, oferecendo-o apenas naquelas áreas cujo crescimento precisa ser incentivado, e preservando áreas que não devem ser adensadas a princípio.

A administração municipal pode ainda, por exemplo, determinar condições ou mesmo regiões da cidade com previsão de descontos na contrapartida da OODC, ou outras facilitações, orientando o crescimento.

Natureza jurídica da Outorga Onerosa do Direito de Construir

Por fim, é importante mencionar que a natureza jurídica da OODC não é de tributo, mas representa remuneração ao município pela utilização de potencial construtivo além do limite da área permitida pela propriedade do terreno. Trata-se, portanto, de forma de compensação financeira por suposto ônus causado em decorrência da sobrecarga causada pelo adensamento urbano, por assim dizer.

O regramento do instrumento urbanístico faz parte do poder da administração municipal de ordenar o aproveitamento do solo urbano, e é um mecanismo que alcança apenas aqueles que estejam nessa situação específica de utilização de um potencial construtivo que foi convencionado como público e que, por conta disso, deve remunerar a municipalidade, como instrumento da função social da propriedade.

Conclusão

Neste texto apresentamos os princípios básicos que deram origem e regem o funcionamento da Outorga Onerosa do Direito de Construir.

É importante perceber que os instrumentos de política urbana podem e devem ser utilizados para gerir o espaço urbano e são imprescindíveis para a construção de uma cidade sustentável. A OODC é um destes instrumentos.

Em textos subsequentes, além de abordarmos outros instrumentos de política urbana, também trataremos de exemplos práticos envolvendo OODC, casos específicos e particularidades.

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